Capítulo II
Julgamento da farsa
Quando o Collor foi afastado do cargo, ele foi alvo de uma cruel e agressiva campanha difamatória, com fortes repercussões no exterior. Apesar de na época o IBOPE ter feito uma pesquisa onde 95% da população disse não ter ido às ruas pedir seu afastamento, a imprensa de um modo geral dava a entender que os 190 milhões de brasileiros estavam entre os manifestantes.
Foram muitos que sugeriram ao presidente ir ate o plenário e ele mesmo fazer sua defesa e se fosse o caso renunciar ao cargo antes de qualquer julgamento, uma vez que nenhum parlamentar faria um julgamento isento. Todos estavam induzidos por interesses pouco nobres.
Uma vez aprovada pela Comissão Especial, instalada e relatada pelo senador paraibano Antonio Mariz, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Sidney Sanchez assume a presidência do Senado e coloca em votação o parecer do relator, que recomendava aceitar as acusações.
O curioso é que alguns senadores afoitos para condenar o presidente, entenderam que aprovar o parecer, era condenar o acusado.
Aprovar o parecer era apenas a primeira parte do julgamento: a apresentação da acusação ou o libelo. A segunda parte onde se apresentaria os argumentos da defesa, nunca se realizou. Não foi dado esta oportunidade ao acusado.
Os senadores receosos de votar contra os grupos ferozes que vociferavam do lado de fora do congresso, começaram a fazer discursos proclamando seus votos contra o presidente e a favor do impeachment. Tudo isso sem conhecer a defesa.
Chegado o dia do julgamento, dia 29 de Dezembro de 1992, e antes de começar a sessão, o advogado José de Moura Rocha pediu que fosse dado um novo prazo para a defesa, já que a testemunha chave, o ex-ministro Thales Ramalho, apresentara, naquela manhã, uma petição acompanhada de um atestado médico, que demonstrava sua impossibilidade de ir ao Senado. O então presidente da Casa, senador Mauro Benevides, confirmou o recebimento da petição e rejeitou o pedido da defesa. Daí a solicitação do advogado do Presidente de registrar em ata que aquilo caracterizava mais um cerceamento do direito de defesa, para em seguida entregar a seguinte nota assinada pelo presidente do Brasil:
“Excelentíssimo Senhor Presidente do Congresso Nacional.
Levo ao conhecimento de Vossa Excelência que, nesta data, e por este instrumento, renuncio ao mandato de Presidente da República, para o qual fui eleito nos pleitos de 15 de novembro e 17 de dezembro de 1989.
Brasília, 29 de dezembro de 1992”
Assinado, F. Collor.
Alem do senador Nelson Carneiro, com a Constituição aberta, estava o senador Josaphat Marinho que afirmava que o assunto estava encerrado. Aplicar qualquer pena sem julgamento não tinha cabimento. O ex-ministro Jarbas Passarinho argumentando o absurdo que seria condenar o presidente Collor, deu o seguinte exemplo ao senador Elcio Alvares que estava com dúvidas: “Admita que num país haja a pena de morte por enforcamento. O réu, ao saber que sua defesa não iria ser aceita, uma vez que os juízes não seriam imparciais e, que seria inevitavelmente enforcado, preferiu o suicídio, já que tinha pavor ao enforcamento. Pergunta: mesmo depois de morto pelo suicídio, deve ser enforcado?”. Neste caso parece que está máxima vale só se o réu fosse o Collor. Era!
No início da tarde, o Brasil empossou Itamar Franco, como o novo Presidente do país. Diante da renúncia, um grupo grande de senadores do PMDB se reuniu, a portas fechadas, com aquele que presidia o julgamento, o presidente do STF, Ministro Sydney Sanches, e decidiu que o julgamento deveria continuar.
Mesmo com um novo presidente empossado, o cidadão Fernando Collor de Mello, ex-presidente, foi julgado como se presidente ainda fosse.
Desta forma, pela sétima vez em um período de três meses, eles passaram por cima das leis. Mais uma vez cometeram um ato arbitrário e violento contra um cidadão e contra a Constituição.
Opinião dos juristas
Muitos foram os que enxergaram, sem paixão, as arbitrariedades cometidas, chegando a denunciá-las em suas obras.
Um deles foi o advogado e jornalista Said Farhat, autor do livro “Dicionário Parlamentar e Político - O processo político e legislativo do Brasil”, que nas páginas 359 e 360 diz:
“... quando o então presidente da República Fernando Collor de Mello, sob processo por crime de responsabilidade perante o Senado, renunciou a seu mandato, em dezembro de 1992, antes da decisão desta Casa, esse ato extinguiu automaticamente o processo de “impeachment”, então em curso. O Senado nada tinha mais a deliberar. Restava somente o processo judicial, baseado nas mesmas acusações, perante o Supremo Tribunal Federal. Contudo, o Senado decidiu, por esmagadora maioria, mas contra a expressa letra da Constituição, que o processo deveria prosseguir.
Na opinião de alguns analistas, inclusive deste autor, ao assim proceder, o Senado exorbitou claramente dos seus poderes e feriu frontalmente a Constituição Federal, em particular ao que diz respeito ao processo legal. “
Já na página 202, o autor afirma:
“Renúncia, como está dito no respectivo verbete, é ato unilateral, de eficácia automática, não sujeito a aceitação ou recusa de outra pessoa, autoridade administrativa ou corpo legislativo.
O jurista Celso Bastos diz na página 202 do livro de Said Farhat:
“Não pode ter o presidente cerceado o seu direito de renúncia, que constitucionalmente é livre, ao propósito de alguns que querem exacerbar a pena do presidente, movidos por rancores miúdos, por amarguras, por espíritos invejosos e recalcados.”
O professor Miguel Reale Junior afirma, na mesma página: “o processo perdeu a razão de existir.”
O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos conclui ainda, na obra de Farhat : “a lógica não permite destituir um ex-presidente.”
O jurista Ives Gandra Martins, comenta acerca do comportamento equivocado do Congresso Nacional, em relação ao Presidente Fernando Collor, nas páginas do seu livro “Comentários à Constituição do Brasil”:
“ O Congresso Nacional julgou o Presidente, de forma política e não técnica. O julgamento do Presidente Fernando Collor, é um exemplo. Ele perdeu o mandato, na suspensão pela Câmara, tendo-lhe sido negado o direito de defesa e acesso aos documentos de acusação, com aval do Supremo Tribunal Federal, que decidiu contra a Jurisprudência vigente.
O advogado e Professor da UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, Sacha Calmon, ao ser entrevistado pela Revista Juridíca Consulex, edição número 19, páginas 17 e 22, resume sua opinião sobre a renúncia do Presidente Collor e a continuação do julgamento:
“Ao meu sentir, uma vez que o ex-presidente renunciou ao cargo, o processo de impedimento perdeu o seu objeto. Não se pode impedir o exercício de cargo a quem já não mais o exerce. A cassação dos direitos políticos do ex-presidente foi uma demasia censurável a qualquer título, enquanto seqüela do impedimento.”
“... entendo que ao renunciar, o ex-presidente não poderia ter sido impedido, nem tampouco ter perdido o direito de se candidatar. Ao povo deveria ter sido assegurado o Poder Supremo de decidir politicamente sobre a questão, uma vez superada a fase aguda da crise política e moral que se abateu sobre a Nação, em meio altamente emocional e descontrolado.”
Já o Professor da UERJ Luís Roberto Barroso, Mestre em Direito pela Universidade de Yale, Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro, ao analisar os momentos do julgamento pelo Senado e pelo Judiciário alerta:
É preciso ter em conta que não se faz justiça para as câmeras de televisão. Não há bom direito onde o que se busca é agradar a opinião pública. Magistrado dando entrevista coletiva ou julgamento transmitido ao vivo é indício grave de que a boa aplicação da lei pode não estar sendo o centro das atenções. A ribalta, a fogueira de vaidades ateada pela mídia, as paixões que a exposição pública desperta são freqüentemente incompatíveis com a serenidade e a imparcialidade que se exige de quem julga. Ao Judiciário pode caber, eventualmente, dar o pão. Nunca o circo. Há decisões que são justas, mas impopulares. O mérito de um juiz não pode ser aferido.
Em dezembro de 1993, através de seus advogados, o ex-presidente Fernando Collor deu entrada no Supremo Tribunal Federal, de um Mandado de Segurança, número 21.689-1, que buscava anular a pena de inabilitação. Quatro juízes concordaram, votando a favor e quatro discordaram, votando contra. O empate em qualquer julgamento beneficia o réu, mas não foi isto que aconteceu.
O STF convocou três ministros, de uma instância inferior, para desempatar.
Resultado 7 a 4 contra o Mandado de Segurança.
Said Farhat comenta: “Collor, é obvio, recorreu da decisão esdrúxula ( do Senado) ao Supremo Tribunal Federal. A ação do ex-presidente, entretanto, foi objeto de um julgado que alguns observadores consideraram surpreendente pela convocação dos três ministros.”
Dois pesos e duas medidas
Passados quatro anos, Collor tentou mais uma vez anular a decisão. Com o nome de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Decorrente da Constituição, foi impetrado em setembro de 1997 e arquivado em dezembro do mesmo ano.
O Supremo, por 7 a 0, disse que não poderia julgar por que o artigo 102 que trata de “Argüição de Descumprimento”, ainda não foi regulamentado. Ora, então porque o Supremo permitiu que a Câmara de Deputados se utilizasse do artigo 85 , que também não estava, como ainda não está, regulamentado, para afastar o presidente, em setembro de 1992?
Em janeiro de 1998, já em outro processo, o juiz da 6a Vara da Justiça Federal, Antonio Oswaldo Scarpa, após analisar uma ação impetrada pelo advogado João Costa Ribeiro Filho, decide deferir a ”Antecipação de Tutela” e enviar para julgamento o pedido do advogado, feito em nome do ex-presidente Collor, para que seja declarado em que consiste a pena aplicada pelo Senado Federal, por entender que proibição do direito de assumir “Função Pública” não inclui “cargos eletivos” e vice-versa.
Três dias depois um juiz substituto, desta vez da Sétima Vara, César Antonio Ramos, cancela a decisão do seu par. Ora, como pode um juiz cancelar a decisão de outro juiz da mesma instância? Para isto, para decidir estas questões, é que existem os Tribunais Superiores. Além do mais, como o argumento principal era a definição de “Função Pública” e “Cargos Eletivos”, nunca antes levados a juízo, o juiz em seu pronunciamento e justificando o pedido de arquivamento do processo, disse que esta questão já havia sido julgada pelo Supremo, o que não é verdade. Terá sido engano ou má fé?
Sem entrar na análise do mérito da questão, cito as conclusões de dois grandes Juristas.
Fernando da Costa Tourinho Filho, ex- Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, que diz: “ A inabilitação não atinge o exercício de mandato eletivo ”.
No mesmo sentido, Joel J. Candido: “Como o instituto da inabilitação não está no elenco dos artigos 14 e 15 da Constituição Federal, ele não corresponde nem a inelegibilidade, tampouco à suspensão dos direitos políticos”.
O curioso desta decisão, proferida pelo juiz César Ramos, é que o processo chegou às mãos dele por volta das 17 horas , como parte de um conjunto de vários processos e o resultado saiu antes das 18 horas, já que às 19 horas estava sendo anunciado nos telejornais. É elogiável a eficiência do juiz que, em poucos minutos, leu, enumerou as páginas, analisou e decidiu, arquivando o processo.
Talvez ele tenha aprendido a fazer análise de processo na mesma escola dos senadores, que em 1992 “leram” as 3.500 páginas em três horas !
Sem respostas
Depois de colher tantas informações sobre a conduta dos deputados e senadores no processo de impeachment, fui conversar com aquele que presidira o Congresso Nacional em dezembro de 1992, Mauro Benevides.
Encontramo-nos duas vezes. A primeira no anexo do Ministério da Justiça em fevereiro de 1998, quando tocamos no assunto superficialmente e a segunda vez em Fortaleza, no saguão de um hotel, uma semana depois, conforme combinamos no primeiro encontro.
Já em Fortaleza, liguei para o ex-senador que disse não poder encontrar-me e que nosso encontro estava cancelado. Lembrei-lhe que só estava ali porque havíamos combinado. Convencido, ele apareceu. Ao chegar ao hotel onde me hospedara, o ex-senador apressou-se a avisar-me que dispunha de pouco tempo e que nosso encontro deveria ser breve.
Naquele momento senti que pouco colheria daquele encontro. Advogado astuto, o ex-senador respondeu as perguntas como se réu fora, com absoluto cuidado para em nada se comprometer.
Devido a complexidade das perguntas e às inexplicáveis respostas, transcrevo a entrevista, tal como aconteceu:
Rony Curvelo- A votação na Câmara dos Deputados foi no dia 29 de setembro de 1992. Na manhã do dia 30 de setembro de 1992, dia seguinte, foi entregue ao Senado. Como a comissão pode apresentar um parecer no mesmo dia?
Mauro Benevides- Mesmo dia? Não tinha condições de fazer isto no mesmo dia!
Rony Curvelo- Mas foi
Mauro Benevides- < Silêncio > ( O ex-senador abre os braços, indicando que não sabia )
Rony Curvelo- O ofício 1.388/92 da Câmara dos Deputados foi lido em Sessão Ordinária no dia 30 de setembro de 1992. Por que não foi feita a leitura da denúncia como é exigido no artigo 44 da lei 1.079/50?
Mauro Benevides- Não sei responder
Rony Curvelo- No dia primeiro de outubro de 1992, o Senado aplicou o regime de urgência, que está previsto no artigo 336 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), mas o artigo 46 da lei 1.079/50 é que deveria ter sido obedecido. Este artigo determina o rito normal. Por que a mudança?
Mauro Benevides- Não teria condições de explicar. Não tenho razões para explicar.
Rony Curvelo- Senador, o artigo 370 do RISF diz que, em todos os trâmites do processo e julgamento, serão observadas as normas prescritas na lei reguladora da espécie. Neste caso, estamos falando da lei 1.079/50. Nesta lei não se admite a votação simbólica em nenhum momento. Por que o senhor no dia 8 de outubro de 1992 adotou a votação simbólica para aprovar o parecer do relator?
Mauro Benevides- Não teria condições de reproduzir este procedimento
Rony Curvelo- O artigo 46 da lei reguladora exige que, antes da votação do parecer elaborado pela Comissão Especial, sejam lidos o parecer, a denúncia e os documentos que a instruíram. Isto não foi feito. Havia alguém para orientá-los?
Mauro Benevides- Atuaram como convidados os juristas Geraldo Ataliba e Celso Bandeira de Mello
Rony Curvelo-Por quem foi recebida a denúncia na Câmara?
Mauro Benevides- Por mim.
Rony Curvelo- Mas não seria a Mesa que deveria receber?
Mauro Benevides- Todos estavam lá.
Rony Curvelo- Ainda na questão da votação do parecer, além de não terem sido feitas as publicações respectivas, não foi sequer respeitado o interstício mínimo do artigo 46 . O parecer foi votado “após a ordem do dia“, quando a lei estabelece que fosse feito na “ ordem do dia “. Por que a mudança?
Mauro Benevides- Não teria condições para responder.
Rony Curvelo- O Senhor sabia que com este procedimento, ou seja, adotar o regime de urgência, não realizar a leitura de urgência, não realizar a leitura das peças indicadas no artigo 4615, o Senado, ou melhor os senadores e aí incluo o senhor, violaram os artigos 170 , 171 ,176 , 277 , 278 ,280 e 281 do RISF ?
Mauro Benevides- Intencionalmente, não houve nenhum propósito da mesa.
Rony Curvelo- Por que o senhor indeferiu o pedido do advogado de defesa para adiar o julgamento, já que a testemunha de defesa apresentara atestado médico?
Mauro Benevides- Não teria condições de reportar.
Rony Curvelo- Mas o senhor se lembra?
Mauro Benevides- Não.
Rony Curvelo- Como não, senador?
Mauro Benevides- Não me lembrando.
Mauro Benevides- Já acabou? Falta muito? -Pergunta mostrando-se extremamente irritado.
Rony Curvelo- Falta pouco senador, respondi e, continuei, pode o Senado se reunir de um momento para o outro e decidir se vão obedecer uma determinada lei ou não ? Explico: A lei diz que na renúncia não há julgamento, mas o Senado votou para que esta lei não fosse obedecida. Pode?
Mauro Benevides- Neste momento a sessão estava sob a Presidência do STF.
Assim finalizou nosso encontro. Ele levantou-se, despediu-se e sumiu, da mesma forma que havia chegado, sem nada dizer.
Dois anos depois da saída de Collor, um dos filhos de Mauro Benevides, é cassado e perde o mandato de Deputado Federal por envolver-se com a Máfia dos Anões do Orçamento.Já Mauro Benevides só conseguiu eleger-se de novo em 2006.
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